quarta-feira, 1 de outubro de 2008

«Sagrada Escritura é essencial para conhecer Cristo» (II)

Entrevista com o cardeal jesuíta Albert Vanhoye


Por Lucas Teixeira, L.C.
ROMA, quarta-feira, 24 de setembro de 2008 (ZENIT.org).- «A Sagrada Escritura é essencial para conhecer Cristo», explica nesta entrevista o cardeal Albert Vanhoye, um dos biblistas contemporâneos mais reconhecidos no mundo, poucos dias antes do próximo Sínodo.
O cardeal Vanhoye, jesuíta, ex-reitor do Instituto Bíblico Pontifício e antigo secretário da Comissão Bíblica Pontifícia, foi criado cardeal por Bento XVI no Consistório de 24 de março de 2006, como reconhecimento a uma vida de serviço à Igreja no campo da exegese bíblica.
O próprio Papa o nomeou membro do próximo Sínodo, que acontecerá em Roma em outubro sobre «A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja».
Nesta entrevista concedida à Zenit, explica o que é a Bíblia para ele e o que espera da citada assembléia mundial de bispos. A primeira parte foi publicada ontem.
– O Sínodo tratará também do tema da pregação da Palavra de Deus, sobretudo da liturgia. Segundo sua experiência, quais são os elementos essenciais a serem levados em conta nas homilias?
– Cardeal Vanhoye: As homilias devem ser fruto da lectio divina, cuja prática pode variar, mas as homilias devem verdadeiramente dar aos fiéis um contato concreto com a Palavra de Deus; portanto, explicar bem claramente seu alcance imediato e depois seguir com a aplicação à vida. Uma homilia nunca pode ser só teórica. Deve ter uma força penetrante na vida. Portanto, deve-se partir do texto e depois aplicá-lo à vida espiritual.
Para a pregação, é útil também usar os exemplos dos santos. Porque os santos ajudam as pessoas a acolherem alguns aspectos dos textos bíblicos que poderão parecer um pouco distantes. Os santos, ao contrário, colocam os textos bíblicos mais ao alcance dos fiéis.
Está claro que o espírito de infância espiritual, por exemplo, que Jesus pede nos Evangelhos – «Se não vos fordes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus» (Mt 18, 3) –, é melhor compreendido melhor se as pessoas contemplarem Teresa do Menino Jesus como modelo. Ou, no que se refere à caridade para com os pobres, a Madre Teresa de Calcutá é um exemplo que estimula as pessoas a compreenderem que verdadeiramente a caridade se dirige aos mais necessitados, que não podemos estar unidos a Cristo se não estivermos abertos a esta caridade.
Por outro lado, a Madre Teresa pôs muito bem em conexão a oração, a união com Cristo e a caridade. Sua vida estava alimentada por uma oração muito profunda, uma vida espiritual exigente, às vezes inclusive dolorosa. Portanto, os exemplos são úteis, mas devem ser unidos aos textos bíblicos, porque os santos o são para dar testemunho desses textos.
– O Sínodo está suscitando e suscitará um renovado interesse pela Bíblia. Que itinerário sugeriria a um fiel que quer conhecer melhor a Palavra de Deus?
– Cardeal Vanhoye: Para um cristão, está claro que deve começar pelo Evangelho. Pegar um Evangelho, aprofundar nele com a meditação, na oração, aplicá-lo à própria vida. Isso é o primeiro e o essencial.
Mas o próprio Evangelho remete ao Antigo Testamento. Jesus é o Messias prometido. Portanto, é útil ler os textos proféticos, especialmente os que são messiânicos. Os salmos são úteis para a oração, mas deve-se dizer que nem sempre têm o espírito evangélico. Portanto, deve-se fazer uma distinção. Alguns salmos cheios de imprecações contra os inimigos estão muito longe do preceito de Jesus de amar os inimigos e de rezar por eles. Está claro que um fiel precisa de ajudas que lhe apresentem os textos e os ponham ao alcance de sua inteligência, de sua capacidade de compreender e viver.
Depois, nos Evangelhos naturalmente há uma diferença entre os sinópticos e o Evangelho de João. O Evangelho mais interessante para o um fiel, à primeira vista, é o de Marcos, que é muito vivaz, conta os milagres de modo detalhado, etc. O Evangelho de Mateus nos dá um ensinamento mais rico e, portanto, deve-se voltar sempre a ele para estar repletos de espírito evangélico. Por outra parte, o Evangelho de João aprofunda a fé de modo maravilhoso. Deve-se meditar verdadeiramente no Evangelho de João, acolhê-lo com espírito de fé e de amor pelo Senhor.
Também Lucas é muito interessante. É o Evangelho do discípulo. Seria possível começar também com o Evangelho de Lucas, que se interessa mais pela relação do discípulo com o Senhor Jesus. Os grandes discurso de Mateus, no Evangelho de Lucas estão divididos. As bem-aventuranças, ao invés de serem expressas em terceira pessoa, dirigem-se diretamente aos discípulos: «Bem-aventurados vós, os pobres...». Este é um exemplo. Lucas se relaciona com Jesus de uma maneira muito delicada, especialmente no relato da Paixão; nele se vê muito bem seu amor delicado pelo Senhor; pelo modo em que atenua as coisas mais cruéis, mais ofensivas.
– Os salmos podem parecer aos jovens sacerdotes um pouco distantes de sua realidade concreta. Que conselho poderia dar-lhes para obter maior proveito da oração da Liturgia das Horas?
– Cardeal Vanhoye: Eu aconselharia que buscassem um comentário apropriado, ou seja, em profundidade, não só filológico ou histórico-crítico, mas um comentário que destaque o conteúdo espiritual dos salmos. Porque está claro que os salmos contêm uma riqueza maravilhosa do ponto de vista espiritual: o sentido de adoração, de confiança em Deus, de união com Deus na oração, na vida. Há nos salmos aspirações espirituais muito belas e muito fortes.
Por outro lado, Santo Ambrósio dizia que o saltério é como o resumo de todo o Antigo Testamento, porque há também salmos históricos, sapienciais, de acolhida da lei do Senhor, etc.
Após o Concílio, facilitou-se a aplicação dos salmos à vida cristã com a omissão das coisas mais distantes do Evangelho. Algo necessário, eu acho, porque um cristão, por exemplo, não pode desejar que os filhos de seus perseguidores sejam esmagados, como diz o salmo dos exilados. Este salmo expressa um afeto muito profundo e terno por Jerusalém, mas acaba com um augúrio muito cruel contra os inimigos. Parece-me oportuno e útil, do ponto de vista da palavra de Deus, omitir coisas que foram corrigidas por Jesus.
– O Sínodo se ocupará também da Sagrada Escritura no contexto do ecumenismo. O senhor teve alguma experiência de trabalho, estudo ou oração neste campo?
– Cardeal Vanhoye: Colaborei na tradução ecumênica francesa, um projeto suscitado pelo Concílio, muito fecundo do ponto de vista ecumênico. Constatou-se que a Bíblia é verdadeiramente um campo de unidade. Naturalmente, há textos bíblicos que deram motivo para diferenças de opinião muito fortes. Mas temos muitas coisas em comum e devemos aproveitá-las.
O Sínodo terá também este aspecto de abertura ecumênica. Está claro que se o protestante segue o “sola scriptura” de Lutero, não está na corrente da Tradição. Há uma dificuldade. Mas, por outro lado, os católicos tendiam a não meditar muito na Bíblia e estar mais atentos aos dogmas e às devoções. Portanto, a atenção dada à Palavra de Deus escrita é certamente um laço muito forte que nos aproxima uns dos outros em uma acolhida comum.
– O senhor conheceu e ensinou muitos exegetas. Como é possível evitar que a Bíblia se converta em um mero objeto de estudo, separado da própria vida espiritual, do qual se podem extrair conclusões que podem pôr em dúvida as verdades da fé?
– Cardeal Vanhoye: Parece-me que o principal remédio é a meditação dos textos bíblicos, com uma atitude de fé e de oração. Os exegetas não podem se contentar com estudar os textos. Devem meditá-los em um ambiente de busca do Senhor e de união com Ele, conscientes sempre de que só Cristo dá toda a riqueza da Escritura inspirada; que é Ele quem abre plenamente nossas mentes à inteligência da Escritura, como diz o Evangelho de Lucas no final.
Portanto, o remédio é, diria eu, a oração, entendida como meditação que busca a união com o Senhor, a acolhida de sua luz, a acolhida de seu amor. Só isso pode preservar do perigo de uma atitude racionalista e esterilizadora, que pode converter-se em um obstáculo para a vida dos fiéis.
– Quais são suas expectativas sobre o Sínodo? Terá alguma influência também nos estudos bíblicos?
– Cardeal Vanhoye: Não estou certo de que o Sínodo possa influenciar muito os estudos exegéticos no sentido de que ele tem uma perspectiva pastoral. É uma perspectiva que certamente entra também na explicação dos textos bíblicos, mas a exegese é uma pesquisa científica em profundidade, desde um ponto de vista que não é diretamente pastoral. Do Sínodo podemos certamente esperar indicações muito fecundas para um maior conhecimento da Bíblia, uma maior acolhida da Bíblia na vida das comunidades cristãs e na vida espiritual das pessoas.
Por outro lado, há também um interesse ecumênico, que está diretamente expressado no «Instrumentum laboris». Pode-se esperar uma aproximação ainda maior das diversas confissões cristãs, graças a esta acolhida da Palavra de Deus escrita.
O «Instrumentum laboris» dá a entender entender que o Sínodo se interessará especialmente pela Palavra de Deus escrita, ainda que amplie sua perspectiva. Diz que a Palavra de Deus é Cristo e, portanto, diz que o fim do Sínodo é dar a conhecer melhor Cristo. Isso me parece verdade como fim último, mas o fim mais direto será evidentemente atrair a atenção sobre a necessidade de um contato mais forte e mais profundo de todos os componentes da Igreja com a Palavra de Deus escrita.
Naturalmente, a Palavra escrita deve voltar a ser viva, e não um texto morto; e para que volte a ser viva, tem de inscrever-se na corrente viva da Tradição e também da pregação e da vida da Igreja.
fonte: Zenit.org

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